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Coluna do influenciador

A judicialização da Saúde Suplementar no Brasil

Normatização do setor, com a da Lei nº 9.656/98, provoca mais conflitos que são levados ao judiciário

A judicialização da Saúde Suplementar no Brasil

Por Margot Valmorbida. Economista, pós-graduada em Gestão Contábil e Financeira; em Cooperativismo de Crédito e em Direito do Seguro. É diretora da Protteges Seguros, de Florianópolis (SC), e influenciadora da Lojacorr.

Com a criação da Lei nº 9.656/98 e da ANS aconteceram importantes mudanças no ramo da saúde suplementar porque “promoverem a regulação, a normatização e a fiscalização das operadoras de planos de saúde, além de proporcionarem mais segurança e mais informação aos beneficiários, definindo de forma mais clara os direitos e as obrigações dessas relações” (MARTINEZ, 2018, p. 11).

No entanto, em que pese a fiscalização mais pesada sobre os planos de saúde, estudiosos indicam que a normatização provoca mais conflitos que são levados ao judiciário. Contudo, a regulação técnica e jurídica do setor traz mais transparência e conscientização dos sujeitos envolvidos (MARTINEZ, 2018).

Convém lembrar que, além de possui um órgão Regulador, o setor de saúde suplementar tem como base regulatória o CDC e a Teoria dos Contratos extraída do Código Civil.

O Direito Contratual envolve a autonomia de vontade das partes para pactuar os mais diversos objetos, desde que lícitos, com os mais variados prazos, e formas de cumprimento da obrigação. O Código Civil brasileiro regula as relações contratuais apresentando como fundamento a liberdade de contratar, ou seja, as partes estão livres para convencionar um contrato de acordo com sua autonomia de vontade. No entanto, uma vez firmado o contrato, suas cláusulas devem ser cumpridas. Essa obrigatoriedade deriva do Princípio do pacta sunt servanda pelo qual os contratos são feitos para serem cumpridos.

Ocorre que, os contratos de planos de saúde são contratos de adesão, cuja autonomia de vontade é reduzida. Sobre essa celeuma:

“Diante dessa nova realidade contratual, a conceituação clássica do contrato passa não mais a se aplicar às relações. Isto principalmente em razão da manifesta redução da autonomia da vontade daquele que adere ao contrato, como visto alhures. Daí se extrai uma das características do contrato de adesão, ou seja, a de que um dos contratantes, o aderente, não terá controle sobre o conteúdo das cláusulas às quais vai aderir ou esse controle se restringe à pequena parcela desse conteúdo (FIGUEIREDO, 2008, p. 11)”

O Código de Defesa do Consumidor conceitua contrato de adesão:

“De acordo com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), contrato de adesão é aquele cujas cláusulas gerais são estabelecidas prévia e unilateralmente pelo fornecedor, sem qualquer possibilidade de participação ou modificação por parte do consumidor, cabendo a esse tão somente aderir ou não à proposta (BRASIL, 1990)”

Convém ressaltar que o termo adesão indica consentimento, ou seja, ao aderir ao contrato, a parte se submete à um contrato pré-estabelecido cuja autonomia de vontade não lhe foi consultada. Devemos atentar-se aqui é que a autonomia de vontade não se verifica na construção das cláusulas que são determinadas unilateralmente pela empresa. No entanto, ela existe quando a parte aceita se submeter a este contrato (OTTONI; ARAÚJO, 2020).

Outra importante constatação é trazida por Faria e Rosenvald (2016) que afirmam que contrato de adesão não tem objetivo de lesar a outra parte, “e sim racionalizar operações econômicas e empresariais. Contudo, é inegável que a unilateralidade por si só gera desequilíbrio contratual, de modo que se faz necessário maior vigilância e controle por parte do ordenamento jurídico”.

Entretanto, é importante frisar que os contratos de adesão são atualmente muito utilizados nas relações de consumo.

“Na sociedade consumerista, predomina o sistema de produção e de distribuição em grande quantidade, sendo que os métodos de contratação em massa são cada vez mais utilizados entre empresas e consumidores. Neste diapasão, foi criado um instrumento contratual que visa a atender às necessidades deste mercado, qual seja, o contrato de adesão. O contrato de adesão surge como uma forma de proporcionar mais eficácia e agilidade às relações contratuais, em especial às de consumo, uma vez que no mundo globalizado não é viável que todos os contratos sejam paritários (UMENO, 2006, p. 18)”

Como nessa modalidade de contrato não ocorre a fase de debates sobre suas cláusulas, é muito comum ocorrer a judicialização do contrato quando mais à frente, o consumidor percebe que não está contente com o que foi pactuado. Além disso, estes contratos são regulados pelo CDC, sendo que o consumidor é considerado parte mais vulnerável da relação consumerista. Ainda, há que se levar em conta que o serviço prestado está relacionado à saúde do consumidor que está consubstanciado na Constituição Federal como Direito Fundamental.

Dante disso, uma regulação e uma fiscalização mais eficiente são necessários visto que envolve a manutenção da vida do usuário. Neste ínterim, Barbugiani explica:

“[…] nos planos e seguros de saúde, o objeto do contrato direta e indiretamente relaciona-se com a integridade física e psíquica do indivíduo e de sua família, motivo pelo qual o poder público passou a regular esse tipo de prestação de serviços. Nesse contexto surgiram instrumentos legais de proteção, como o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), entretanto eles não são os únicos no Brasil nem se restringem ao nosso país, sendo diversas as formas de tutela dos usuários desses serviços ao redor do mundo, variando conforme a política pública adotada por cada Estado (BARBUGIANI, 2015, p. 19)”

Ocorre que, nem sempre a assistência à saúde prestada pelos planos de saúde possui a eficiência e a qualidade desejada pelos usuários, sendo comum que demandas sejam levadas ao judiciário para solução do problema. Muitas questões são discutidas nessas ações judiciais que envolvem o descumprimento das obrigações assumidas pelas empresas prestadoras de serviços de saúde. Neste sentido, Lopes preceitua:

“A análise da jurisprudência pátria indica que o Poder Judiciário tem cumprido muito bem seu papel no julgamento das lides que envolvem o tema de seguros e planos de saúde. Apesar disso, questiona-se se a judicialização do serviço privado de saúde é, de fato realidade necessária e insuperável. A experiência na Judicatura revela que, na maioria dos casos, a razão está com o consumidor do serviço de saúde suplementar. Diante desse fato, é inafastável a conclusão de que a judicialização do tema é resultado da falta de real comprometimento das empresas prestadoras de serviços de saúde com o cumprimento da lei vigente e com a prestação de serviço adequado e eficaz. A experiência prática mostra que a maior parte das demandas judiciais poderia ser evitada caso a prestadora do serviço de plano de saúde cumprisse a lei vigente e adotasse postura de inibidora de conflitos (LOPES, 2020, p. 3)”

Convém ressaltar que no julgamento de demandas que envolvem planos de saúde, ocorrem aspectos controvertidos tendo em vista que na maioria das vezes na fundamentação é invocado o direito à saúde do usuário a qualquer custo. Ocorre que, decisões recorrentes podem comprometer o equilíbrio do setor, criando e excluindo obrigações e regras. Neste sentido, Martinez comenta:

“Diversas são as decisões que se utilizam unicamente do direito fundamental à saúde para conceder o bem jurídico pleiteado pelo beneficiário, sem considerar outros direitos e valores também previstos na Constituição e que também devem prevalecer na análise das lides que envolvem a assistência à saúde privada. É dizer, no julgamento das demandas quem envolvem o direito à saúde no ambiente privado, deve haver uma clara ponderação acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, bem como acerca dos impactos econômicos e sociais que decorrerão das decisões, sob pena de provocar efeitos indesejados tanto para a regulação, como para o próprio setor regulado e para os usuários destes serviços (MARTINEZ, 2018, p. 13)”

Notadamente é cediço nos Tribunais a concepção de que o direito à saúde como Direito Fundamental deve prevalecer sobre qualquer os impactos econômicos que uma decisão judicial pode trazer à prestadora de serviços de saúde.

Corroborando com o exposto citamos o acórdão proferido pelo TJMG, nos autos da Apelação Cível 1.0103.08.006662-6/001.

“Ora, o particular que presta uma atividade econômica correlacionada com os serviços médicos e de saúde possui os mesmos deveres do Estado, devendo seu contrato ser submisso às normas constitucionais e infraconstitucionais diretamente ligadas à matéria. Assim, apesar de a assistência à saúde ser livre à iniciativa privada, esta não pode exercer a sua liberdade econômica de forma absoluta, encontrando limitações destinadas a promover a defesa do consumidor dos serviços de saúde, a fim de que seja atingida a finalidade de assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça social (art. 170, CF). Com efeito, embora aparentemente válida a cláusula que limita o tratamento no caso de quimioterapia, não se coaduna esta com as necessidades do consumidor que, ao contratar, almejou um plano de saúde que lhe garantisse uma assistência médico-hospitalar completa, preservando sua integridade física como um todo”. (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível 1.0103.08.006662- 6/001. 14ª Câmara Cível. Relator: Des. Valdez Leite Machado. j. 23 jul. 2009. DJ, 18 ago. 2009). Grifado”

Impõe asseverar que esse embate jurídico entre usuário e prestador de plano de saúde acaba por criar uma celeuma jurídica, uma vez que,

“[…] de um lado, o beneficiário pleiteia a garantia do direito à vida e à saúde através da cobertura de algum procedimento, ou da redução de percentual de reajuste em sua mensalidade, por exemplo; do outro lado, figura a operadora defendendo o seu direito fundamental à livre iniciativa, da liberdade de contratar e da propriedade privada, devendo haver um equilíbrio entre os valores envolvidos, não sendo razoável que um particular exija de outro a garantia de um direito fundamental além dos limites traçados por um instrumento contratual e pelas normas específicas de regulação que se aplicam àquela relação jurídica, numa clara violação ao princípio da boa-fé objetiva. (MARTINEZ, 2018, p. 15)”

Indubitavelmente, o que se busca sempre é o equilíbrio das relações, sejam elas públicas ou privadas. De fato, não se pode olvidar que o Direito à Saúde é Direito fundamental, sendo, portanto, de extrema relevância devendo ser garantido pelo Estado.

Contudo, em se tratando de relações comerciais, reguladas pelo CDC, e que envolvem a livre iniciativa, deve haver uma flexibilização do poder judiciário, a fim de garantir a harmonia do setor.